A moralidade pública é um dos princípios previstos pelo art. 37 da Constituição Federal de 1988 e possui importância nevrálgica bom funcionamento da Administração Pública, já que determinadas condutas, embora não previstas em lei, podem violar o aspecto axiológico do Direito, razão pela qual se deve exigir do ato administrativo não somente a conformidade com os ditames da legalidade, outrossim que não viole os valores protegidos constitucionalmente.
Com espeque na força normativa de tal princípio constitucional, diversas leis foram promulgadas com a finalidade de instaurar a vigência da moralidade no âmbito das relações públicas. A Lei Complementar nº 101/2000, denominada Lei de Responsabilidade Fiscal, por exemplo, estabeleceu, dentre outras diretrizes, diversos mecanismos de controle e fiscalização visando a impor a transparência e a ampla divulgação dos orçamentos e aspectos financeiros públicos, conforme dispõe o art. 48 do referido diploma normativo.
Na mesma direção, a Lei nº 8.429/1992, também conhecida como Lei de Improbidade Administrativa, criou um verdadeiro microssistema normativo (OLIVEIRA; NEVES, 2020, p. 132) dotado de princípios e noções próprias, cuja teleologia é sancionar comportamentos lesivos à Administração Pública e assegurar que os atos administrativos estejam sempre orientados pelo interesse público, evitando resultar prejuízos ao erário, ou gerar enriquecimento ilícito ou violar os princípios da Administração Pública.
Convém notar que a Lei de Improbidade Administrativa surgiu como uma forma de atenuar o paternalismo e a subversão da coisa pública, porquanto, no Brasil, ainda há muita impunidade contra os crimes cometidos por gestores públicos. Impreterivelmente, grande parte de tais ilícitos podem permanecer sem punição por parte do Estado. Neste sentido, o Conselho Nacional de Justiça, em estudo realizado em 2019, estipulou que cerca de 4% dos processos ligados à corrupção foram terminados por prescrição[1].
Ademais, o CNJ ponderou ainda que 46,5% dos inquéritos policiais instaurados em 2019 contra agentes públicos tenham por objeto algum crime de lavagem de dinheiro, e que cerca de 39% investigaria delitos de corrupção passiva, o que demonstra ambos valores representam que mais de 85% dos inquéritos contra corrupção, onde a vítima predominante costuma ser a União, que figura como parte lesada em 74,1% de tais investigações preliminares[2]. Não se pode olvidar, portanto, que, além da pandemia do coronavírus, o Brasil sofre de uma pandemia de corrupção que já está permeada nas raízes da República há mais de um século.
Portanto, o Poder Público deve assegurar a probidade nas relações públicas a fim de reduzir a incidência de crimes contra a Administração Pública, e a Ação de Improbidade Administrativa é um instrumento de grande eficiência para arrefecer condutas contrárias ao interesse público e que atentem contra a referida probidade. Segundo dados do Ministério Público Federal, em 2007, quase 2.400 ações de improbidade administrativa foram ajuizadas contra gestores, servidores e ex-gestores, além de particulares que se beneficiaram da coisa pública.
De toda sorte, em que pese se deva sancionar os atos ímprobos, não se pode punir a todo custo. Neste sentido, a Lei de Improbidade Administrativa apresenta alguns aspectos bastante questionáveis, e cuja aplicação pelos tribunais do país nem sempre se mostra adequada a um Estado que pretende ser Democrático de Direito, devendo tais pontos controversos serem fiscalizados pela sociedade e pelos operários do ordenamento jurídico, sob pena de aviltar os preceitos mandamentais da Carta Magna.
A Constituição Federal, conforme disposto no art. 5º, XXIX, prescreve que não há crime sem anterior previsão legal. Muito embora um ato de improbidade não necessariamente seja também um crime, convém que se observe a mesma ratio legis do referido inciso, porquanto interpretar a contrario sensu, isto é, pela desnecessidade de lei anterior para as infrações que não constituem delitos penais, é no mínimo um despautério hermenêutico que atenta contra a segurança jurídica.
Em que pese a Lei nº 8.429/1992 prever uma série de ilícitos, é inegável que muitos dispositivos do referido diploma apresentam enorme imprecisão. Notadamente, o texto normativo do art. 11, que prevê diversas hipóteses de violação a princípios e valores totalmente inexatos e que dependem da subjetividade do julgador para sua aplicação – o que afronta diretamente o princípio da tipicidade (HARGER, 2003, p. 197), porquanto não se pode punir o agente sem que ele tenha a mais nítida percepção acerca da licitude ou ilicitude de suas condutas.
De nada adianta a previsão legal da sanção sem que fiquem claras suas hipóteses de incidência, sob pena de o intérprete de tais normas de caráter aberto transfigurar-se num verdadeiro legislador (MATTOS, 2006, p. 21). Neste sentido mesmo (JUSTEN FILHO, 1998, p. 619):
Não basta a simples previsão legal da existência da sanção. O princípio da legalidade exige a descrição da “hipótese de incidência” da sanção. A expressão, usualmente utilizada no campo tributário, indica o aspecto da norma que define o pressuposto de aplicação do mandamento normativo. A imposição de sanções administrativas depende da previsão tanto da hipótese de incidência quanto da consequência. A definição deverá verificar-se através da lei.
Em julgado de 2019 (AREsp 148039, 2019/0093964-3 – 07/04/2020), o réu fora processado pelo art. 10 da Lei de Improbidade Administrativa, isto é, por provocar danos ao erário, ao celebrar contrato de locação com dinheiro público quanto a um carro cujo valor pago durante nove meses seria suficiente para adquirir um veículo similar. No entanto, a referida ação de improbidade não se atentou ao critério da discricionariedade do administrador, que deve observar a oportunidade e a conveniência. Conforme apontou o Superior Tribunal de Justiça:
13. No entanto, o valor final do veículo não é o único dispêndio que se tem com o bem: sem dúvida alguma, há as despesas posteriores de guarda, conservação, manutenção, sem contar com a depreciação experimentada anualmente quando se tem um automóvel em sua propriedade. A locação libera o contratante desses encargos, possibilitando, ademais, que o locador tenha sempre um veículo sempre novo e livre de custos ordinários e regulares que, propter rem, todo proprietário tem que assumir quando o adquire (AREsp 148039, 2019/0093964-3 – 07/04/2020)
Não se deve permitir, portanto, que a ação de improbidade administrativa seja utilizada para limitar o âmbito de atuação dos agentes públicos quando estes agem em consonância com a lei e com a moralidade, sob pena de se converter tal ação num instrumento jurídico espúrio. Cabe destacar que não é admissível a responsabilidade objetiva para a caracterização dos atos de improbidade, devendo existir, quanto ao art. 10 da referida Lei, no mínimo a culpa do agente (AgRg no REsp 1500812/SE, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 21/05/2015, DJe 28/05/2015; REsp 1238301/MG, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 19/03/2015, DJe 04/05/2015).
Não se pretende, através de tal argumentação, defender a impunidade. Trata-se tão somente do reconhecimento de que os fins não podem justificar os meios, já que os direitos fundamentais e as garantias não podem ceder ao puro animus puniendi do Estado. Punir a todo custo é o primeiro passo para a subversão da ordem constitucional, e que acabará por tornar totalmente arbitrária a justiça. Acatar entendimento que viole a Constituição é também atentar inclusive contra o princípio da moralidade que foi a matriz responsável por engendrar a Lei nº 8.429/1992, porquanto (FAZZIO, 2016, p. 83): “A eficiência, sem a moralidade, não é eficiência administrativa, mas simples objetivo técnico-instrumental”.
A Ação de Improbidade Administrativa também não pode converter-se num meio de persecução da pessoa do indivíduo, devendo seu oferecimento guardar consonância com a razoabilidade e com a real intenção de apurar o ilícito. Em 2017, chegou ao Superior Tribunal de Justiça processo em que o Ministério Público Federal apresentara ação de improbidade contra a ré, mesmo ciente de que havia sido absolvida no âmbito criminal. O Ministro Napoleão Nunes Maia Filho apreciou monocraticamente a questão e proferiu doutíssimo juízo:
Com efeito, se o Réu obtém absolvição criminal, com trânsito em julgado, qualquer que seja a razão da absolvição, sobre ele não há de incidir qualquer sanção decorrente do fato objeto do processo criminal, salvo se remanescer resíduo passível de punição em outra instância (não penal), como muito bem aponta a Súmula 18/STF; a independência de instâncias não deve ser entendida como um dogma religioso, impassível de ajustar-se às cambiantes situações da vida humana e social, (…) não se tem notícia que a alguém tenha ocorrido dizer que a instância criminal, neste caso, estaria se subordinando à instância administrativa fiscal: trata-se, apenas, de uma questão de lógica linear e quase intuitiva (ARESP Nº 1.098.135-MA, 2017).
Outro ponto criticável da Lei nº 8.429/1992 é deixar a critério do julgador promover a escolha das sanções, mas permitindo a ele diversas combinações daquelas punições previstas pelo art. 12 do referido diploma. Isto corrobora para que atos semelhantes sejam punidos de maneira distinta. Não obstante, algumas medidas punitivas, tais quais a proibição de contratar com o Poder Público e a impossibilidade de receber benefícios ou incentivos fiscais, são coerções que, na prática, podem passar da pessoa do apenado. São, portanto, bastante discutíveis (OSÓRIO, 2000, p. 340):
A pena administrativa somente pode atingir a pessoa sancionada, o gente efetivamente punido, não podendo ultrapassar de sua pessoa. Pessoalidade da sanção administrativa veda, por certo, a chamada responsabilidade solidária, ainda que estabelecida por lei, porque a lei não pode violentar um princípio constitucional regente do Direito Administrativo Sancionador.
Destarte, em que pese a Lei de Improbidade Administrativa tenha feito diversos avanços, não se pode admitir que ela seja utilizada como um meio de perseguição, ou como modo de processar desarrazoadamente diversas condutas. De acordo com a projeção apresentada no 8º Encontro Nacional do Poder Judiciário, se o número de processos continuar aumentando ao longo dos anos, poderá chegar a 114,5 milhões de processos em 2020, o que sobrecarregará ainda mais o Judiciário.
Portanto, é fundamental que se use com prudência da ação de improbidade administrativa, e que as normas de caráter aberto que a Lei nº 8.429/1992 prevê, não sejam manejadas para subverter a moralidade que foi inspiração para originar o referido estatuto. Desta feita, o presente artigo propôs breves reflexões acerca da temática da improbidade administrativa, e logrou por demonstrar que os juristas e o Poder Judiciário como um todo devem apresentar bastante cautela com os usos e interpretações que fazem do mencionado diploma normativo.
Referências Bibliográficas
HARGER, Marcelo. Aspectos inconstitucionais da Lei de Improbidade Administrativa. Revista de Direito Administrativo & Constitucional. Ano 3, n. 11, (jan./mar. 2003). Belo Horizonte: Fórum, 2003.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 5. ed. São Paulo: Dialética, 1998
MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. O limite da improbidade administrativa. 3. ed. rev. atual. ampl. Rio de Janeiro: América jurídica, 2006.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Improbidade administrativa: direito material e processual. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
[1] Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/02/estudo-do-cnj-aponta-baixo-indice-de-prescricao-de-casos-de-corrupcao.shtml>. Acesso em 10.04.2020.
[2] Disponível aqui: < https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/02/26/lavagem-de-dinheiro-representa-45-dos-crimes-de-corrupcao-aponta-cnj.htm > Acesso em 10/06/2020