Primeiro texto da nossa Coluna no Jornal A Gazeta do Amapá, veiculada na edição deste domingo (20.06.2021), cujo título é Crimes Tributários x Lavagem de Dinheiro.
O artigo aborda a relação entre o crime tributário e lavagem de ativos, a fim de obter a resposta se a sonegação fiscal tem o condão de ser um crime antecedente ao delito de embranquecimento do capital, consoante os diplomas legais que regem a matéria, a jurisprudência dos Tribunais Superiores, e os acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, em especial as Convenção de Viena (1988), Convenção de Palermo (2000) e, a principal, Convenção de Mérida (2003).
Link para a reportagem no Jornal, página 65: https://agazetadoamapa.com.br/arquivos/assinaturas/251/Jornal-A-Gazeta-20e21-06-2021(2).pdf
Leia na integra abaixo.
Crimes Tributários x Lavagem de Dinheiro
A lavagem de ativos é o ato – ou conjunto de atos – praticados com o fim de disfarçar a natureza, origem ou a localização de valores ou direitos de origem delitiva ou contravencional, com objetivo de reinseri-lo na economia formal com aparência de “limpo”. O propósito do lavador é distanciar o ativo de sua fonte ilícita, de modo a dificultar o rastreamento do crime antecedente.
A expressão “lavagem de dinheiro” foi aplicada inicialmente pelas autoridades norte- americanas para descrever um dos métodos usados pela máfia, por volta do ano de 1930, para justificar a origem de recurso ilícito através da exploração de máquinas de lavar roupas automáticas. Em 1982, o termo foi utilizado pela primeira vez em um processo judicial nos EUA, sendo empregada posteriormente em textos normativos e na literatura jurídica nacionais e internacionais. (BADARÓ; BOTTINI, 2019, p. 25)
O Brasil é signatário de importantes acordo internacionais cujo objetivo é o combate à lavagem de ativos, dentre os quais, a Convenção de Viena (1988), Convenção de Palermo (2000), e a principal, a Convenção de Mérida (2003). A formação do Sistema de Prevenção e Combate à Lavagem de Dinheiro representa um processo único de internacionalização do direito penal, que inicialmente objetivava o combate ao tráfico de drogas e foi ampliado para combater todo tipo de infração penal.
Numa estratégia de enfrentamento da criminalidade organizada, em uma esfera global, a persecução penal mira agora nos recursos provenientes de ilícitos, com a finalidade de esvaziar o poder das organizações criminosas e responsabilizar os reais beneficiários do delito.
Nesse cenário, indo ao encontro das Convenções retromencionadas, a Lei no 12.683/2012 inovou a ordem jurídica e extinguiu o rol taxativo de crimes antecedentes ao delito de lavagem de capitais previsto na Lei no 9.613/1998, o qual previa apenas crimes mais graves, como como o tráfico ilícito de substâncias entorpecentes, crimes contra a administração pública e crimes contra o sistema financeiro, dentre outros.
Assim, o Direito Brasileiro, na chamada terceira geração dos delitos de lavagem de dinheiro, adotou o entendimento mais rigoroso e exagerado de que qualquer infração penal pode configurar crime antecedente de lavagem de dinheiro e também culminou no aumento da multa máxima de R$ 20 mil para R$ 20 milhões.
Com efeito, diante da nova redação, até mesmo uma contravenção penal é capaz de caracterizar o referido delito, como, por exemplo, a organização de uma rifa (Art. 51, da Lei de Contravenções Penais: “Promover ou fazer extrair loteria, sem autorização legal. Pena –
prisão simples, de seis meses a dois anos, e multa, de cinco a dez contos de réis, estendendo- se os efeitos da condenação à perda dos moveis existentes no local.”)
Há, no entanto, uma problemática no que tange a inclusão dos crimes tributários como delitos passíveis de se promover a lavagem de dinheiro, pois, tecnicamente, a evasão fiscal não é feita com intuito de obter bem ilícito, ou seja, de enriquecer, mas sim de “não empobrecer” (DÁ MESQUITA, 2002, p.67), de modo que a grande celeuma, em apartada síntese, é a aptidão ou a inaptidão dos crimes tributários em constituir fato antecedente para fins de embranquecimento de capital.
A Convenção de Viena de 1988 já tendia a categorizar os delitos fiscais, o que foi reforçado pelas 40 Recomendações do Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI), conforme a nota interpretativa 4 da Recomendação 3: “Independente da abordagem adotada, cada país deverá, no mínimo, incluir uma variedade de crimes dentro de cada uma das categorias designadas. O crime de lavagem de dinheiro deverá se estender a qualquer tipo de propriedade, independentemente de seu valor, que represente direta ou indiretamente os proventos de crime. Quando for provado que a propriedade é fruto de crime, não deverá ser necessário que alguém seja condenado por crime antecedente.”
A solução para tal problemática, entretanto, não apresenta uniformidade no cenário internacional, vez que não há resposta definitiva ou jurisprudência madura para tanto. Países como Portugal, Alemanha, França, Itália e Espanha admitem que a evasão fiscal possa ser um crime antecedente ao de lavagem de dinheiro (BONFIM, 2017, p. 200-207), alinhando-se, portanto, às Recomendações do GAFI.
Ocorre que os crimes tributários, no Brasil, possuem, historicamente, uma essência arrecadatória, porquanto o pagamento permite a exclusão da punibilidade. O Brasil, inclusive na Exposição de Motivos da Lei no 9.613/1998, expressamente excluía que delitos de tal natureza pudessem constituir antecedente do embranquecimento de capitais, já que não geram bens em si. Todavia, as alterações promovidas pela Lei no 12.683/2012 autorizam que a lavagem de dinheiro possa ocorrer inclusive em meio a delitos antecedentes cuja punibilidade do autor já foi extinta, fato este que alterou sobremaneira a dinâmica dantes conhecida acerca dos crimes tributários (BOTTINI, 2014), já que o próprio STJ reconheceu que o pagamento dos débitos fiscais ou outra causa de extinção da punibilidade seriam irrelevantes para fins de lavagem de ativos, ou seja, o delito de embranquecimento do capital remanesce mesmo diante do pagamento do tributo devido. (RESP n. 1.234.696, da 5a Turma, de Relatoria da Ministra Laurita Vaz, Brasília, DF, DJe 03/02/2014).
Nada obstante, ainda existe uma clara divergência doutrinária. Parcela da doutrina advoga no sentido de que a sonegação fiscal não tem o condão de “limpar” ou “sujar” a origem do dinheiro (MENDRONI, 2018, p. 195), de modo que não poderiam, os valores poupados, caracterizarem um crime antecedente para fins de lavagem de dinheiro, salvo em caso de origem ilícita dos valores. Isto porque não haveria um “acréscimo”, conforme dispunha a Exposição de Motivos. De outro lado, há quem defenda que, malgrado não haja acréscimo de bens, não seria razoável deixar de punir a ocultação ou dissimulação em tal contexto.
Diante disso, por não existir doutrina consolidada ou jurisprudência totalmente formada, tal cenário repleto de incertezas criou a necessidade de delimitar alguns pontos sobre os aspectos de precedência dos crimes tributários para fins de lavagem de capitais. É importante destacar, de início, que o delito da Lei no 9.613/1998 depende da ocorrência de outra infração penal, haja vista que o tipo objetivo do embranquecimento é constituído pelas condutas de ocultar ou dissimular os bens ilícitos provenientes de uma outra infração penal prévia/antecedente, sendo o crime de lavagem de dinheiro classificado como crime acessório ou parasitário.
No entanto, não há uma dependência total, mas uma acessoriedade limitada (BALTAZAR JÚNIOR, 2014, p. 1135), haja vista que o STJ reconheceu certa autonomia ao crime de lavagem de dinheiro (APn 923/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, CORTE ESPECIAL, julgado em 23/09/2019, DJe 26/09/2019). Não se deve, no entanto, compreender que a sonegação possa afetar todos os ganhos, já que, se provenientes de atividade lícita, os rendimentos não se tornam ilícitos por si mesmos, mas tão somente a parcela da qual resultou o inadimplemento da obrigação fiscal (BADARÓ; BOTTINI, 2019, p. 113).
Entender de maneira diversa seria um despautério, pois rendimentos obtidos por atividade lícita que não contraria o Direito não poderiam ser eivados apenas por uma parcela maculada pela sonegação fiscal. Não bastasse, ainda que tal parcela exista, também é imprescindível a caracterização da intenção do sujeito (o dolo) em ocultar ou dissimular os valores decorrentes do não pagamento do tributo, porquanto, por negligência, pode determinada pessoa não pagar o devido tributo e investir o quantum sonegado em atividades lícitas, de modo que não seria adequado presumir, sob pena de violar os preceitos básicos do Direito Penal, que pretendesse incorrer em lavagem de capitais, já que nem todas condutas geram risco juridicamente reprovado, e determinados riscos são inerentes à categoria profissional do indivíduo (CALLEGARI, 2017, p. 201).
Ademais, a Súmula Vinculante n.o 24 atribui papel ontológico ao lançamento definitivo do tributo para fins de constituição de crimes tributários, razão pela qual, antes do lançamento, não se poderia falar, em tese, de possibilidade de crime de sonegação de impostos ou de instauração de inquérito para apurar tal fato, segundo orientação do STF (BADARÓ; BOTTINI, 2019, p. 114), o que impede a consumação da lavagem de dinheiro, já que, embora guarde certa autonomia, ainda se trata de um crime acessório. No entanto, a jurisprudência pátria tem se orientado no sentido de que não seria possível elidir a investigação caso houvesse outros crimes a serem apurados (SAIBRO, 2015), como associação criminosa (neste sentido, TRF-1, HC n. 12.904, da Terceira Turma, de Relatoria do Juiz Federal convocado Renato Martins Prates).
Isto porque os Tribunais pátrios reconhecem que a prestação tributária não entregue constitui uma vantagem econômica ilícita. Nota-se que tal vantagem, que já integrava o patrimônio do agente, somente nele remanesce em decorrência de um delito fiscal, então, se esse delito produziu uma vantagem pecuniária ilícita, esta pode ser considerada como objeto material da lavagem de dinheiro. (BONFIM, 2017, p. 222)
Cumpre ressaltar ainda que não é qualquer quantum inadimplido que pode fazer incidir crime tributário. Para o STF, o tributo cujo valor não exceda R$ 20.000,00, quando sonegado, é fato atípico (não é crime), haja vista a aplicação da teoria da insignificância (consoante HC 120617, HC 120620/RS e HC 121322/PR). O STJ, tradicionalmente, compreendia tal limiar em R$ 10.000,00, mas, em 2018, ao revisar o Tema 157 dos Recursos Repetitivos, fixou o limite também em R$ 20.000,00.
Em outros termos, a tese firmada em sede de recursos repetitivos, que vêm sendo aplicada no âmbito dos Tribunais Superiores, é de que deve ser incidir o “princípio da insignificância aos crimes tributários federais e de descaminho quando o débito tributário verificado não ultrapassar o limite de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), a teor do disposto no art. 20 da Lei n. 10.522/2002, com as atualizações efetivadas pelas Portarias 75 e 130, ambas do Ministério da Fazenda”, o que afasta a incidência do crime de lavagem de ativos quando estamos diante de uma sonegação fiscal (crime antecedente) cujo valor não exceda aquele do art. 20 da Lei no 10.522/2002, ou seja, R$ 20.000,00 (vinte mil reais).
De toda sorte, ainda há um longo caminho a ser percorrido a fim de obter maior estabilidade no cenário jurisprudencial e doutrinário acerca dos efeitos das modificações propostas pela Lei no 12.683/2012, em especial no que concerne aos delitos tributários. Em que pese o debate não reste exaurido, buscou, o presente artigo, sintetizar alguns dos aspectos mais importantes que decorrem das referidas alterações, e que podem influenciar de forma significativa o cenário jurídico e econômico.
MINICURRÍCULO
AUTOR
IURI CAVALCANTE REIS
É Advogado, CEO do Cavalcante Reis Advogados e integrante da Comissão de Juristas do Senado Federal criada para consolidar a proposta do novo Código Comercial. Mestrando em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP/Brasília) e Master of Laws em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ). É autor de livros, pareceres e artigos jurídicos.
E-mail: iuri@cavalcantereis.adv.br
1 Comment
Bacana demais esse artigo, estava pesquisando o assunto na
internet e acabei achando esse site… Muito Legal!!!