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Infração administrativa disciplinar que também constitui crime: aspectos quanto ao prazo prescricional

Em que pese o Direito ser dividido em diversos ramos jurídicos, tal separação resulta tão somente de comodidade e de organização, porquanto o ilícito jurídico é um só, haja vista que um só também é o dever jurídico (HUNGRIA, 1945, p. 24). Neste contexto, de um mesmo fato jurídico pode existir o condão de materializar dois ou mais suportes fáticos distintos, o que possibilita a irradiação de situações jurídicas, por exemplo, de seara penal, como o crime e a pena, e de seara administrativa, tal qual o processo administrativo e a sanção.

Um dos aspectos de tal dinâmica que pode gerar dúvidas é o prazo prescricional. Caso um determinado fato jurídico possua propensão de constituir, simultaneamente, ilícito administrativo e ilícito penal, qual seria o termo a quo e o prazo adotado para fins de fluência da prescrição? É basicamente este o tema que este artigo pretende elucidar, vez que não é incomum encontrar casos em que a resposta para tal problema seja necessária para promover o deslinde do processo.

 Nos ilícitos administrativos que ensejam processo administrativo disciplinar, muita controvérsia já pairou sobre o termo a quo da fluência da prescrição. Isso porque o art. 142, § 1º da Lei nº 8.112/1990 dispõe que o prazo da prescrição da ação disciplinar começa a correr da data em que o fato objeto de tal ação tornou-se conhecido pela Administração Pública, mas o dispositivo não elucidou com precisão qual autoridade que deveria conhecer do fato para que se fixasse o termo inicial da prescrição.

A Advocacia Geral da União, no Parecer GQ-55, defendeu que a autoridade referida pela lei seria aquela competente para instaurar o processo administrativo disciplinar. Ocorre que a jurisprudência, destoando do Parecer, pacificou-se outrora no sentido de que o conhecimento não precisaria se dar por autoridade específica para fins da fluência do prazo prescricional nos termos do art. 142, § 1º da Lei nº 8.112/1990 (MS nº 14.159–DF), bastando que fosse autoridade, portanto.

O STJ, em 2013, no MS nº 17.456 – DF, alterou o entendimento jurisprudencial e acompanhou a recomendação do Parecer da AGU, de modo que, atualmente, a fluência do prazo prescricional dar-se-á pelo conhecimento da autoridade competente para instaurar o PAD, e não mais por qualquer outra autoridade da Administração Pública. O enunciado da Súmula 635 do STJ também trata sobre o tema. Vale destacar também que, em que pese a abertura do PAD gere interrupção do prazo prescricional (art. 142, § 3.º, da Lei 8.112/1990), ainda é possível ocorrer a prescrição intercorrente, a qual extinguirá a punibilidade (OLIVEIRA, 2019, p. 387). Já os prazos de prescrição da ação disciplinar são aqueles previstos pela Lei nº 8.112/1990:

                      Art. 142.  A ação disciplinar prescreverá:

                      I – em 5 (cinco) anos, quanto às infrações puníveis com demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade e destituição de cargo em comissão;

                      II – em 2 (dois) anos, quanto à suspensão;

                      III – em 180 (cento e oitenta) dias, quanto à advertência.

Quanto aos ilícitos penais, e em especial nos crimes, o prazo de prescrição criminal está previsto no art. 109 do Código Penal, estabelecendo também o termo inicial de contagem da prescrição, que depende da natureza e características específicas do delito. Tanto na prescrição penal quanto na administrativa, no entanto, os principais fundamentos são comuns, porquanto o decurso do tempo enfraquece o lastro probatório e a capacidade de reconstituir juridicamente os fatos, e o Estado deve arcar com sua própria inércia, de modo a possuir um determinado prazo para efetuar a prestação jurisdicional, salvo quanto imprescritível (BITTENCOURT, 2019, p. 972).

A situação se torna mais complexa, entretanto, quando o mesmo fato, no caso concreto, pode sujeitar-se tanto pelo regime de prescrição criminal quanto pelo administrativo, tal qual um servidor público em relação ao qual se oferece denúncia pela prática o crime de peculato-desvio, e ainda, ação disciplinar com base na Lei nº 8.112/1990). Ambas instâncias são independentes entre si, mas, no atual desenvolvimento do Direito, tal separação não pode ser absoluta, pois uma sentença penal de absolvição por negativa de autoria, por exemplo, poderá afetar o âmbito do processo administrativo (MATTOS, 2010, p. 305)

De pronto, o art. 142, § 2º da Lei nº 8.112/1990 dispõe que os prazos de prescrição previstos na lei penal se aplicam às infrações disciplinares quanto forem simultaneamente crimes. Ocorre que o STJ mantinha entendimento no sentido de que tal dispositivo só poderia ser aplicado caso existisse também investigação criminal quanto ao fato, o que poderia ser comprovado pelo oferecimento da denúncia, ou, no mínimo, pela instauração do inquérito policial ou outra forma de investigação preliminar. Ou seja, sem a apuração criminal, aplicar-se-iam as disposições do art. 142 dantes mencionado para fins de prescrição.

No entanto, o STJ alterou seu entendimento sobre a matéria, de modo interpretar o dispositivo de maneira diversa (MS nº 20.857-DF), conforme trecho do acórdão:

O prazo prescricional previsto na lei penal se aplica às infrações disciplinares também capituladas como crime independentemente da apuração criminal da conduta do servidor. Para se aplicar a regra do § 2º do art. 142 da Lei nº 8.112/90 não se exige que o fato esteja sendo apurado na esfera penal (não se exige que tenha havido oferecimento de denúncia ou instauração de inquérito policial). Se a infração disciplinar praticada for, em tese, também crime, deve ser aplicado o prazo prescricional previsto na legislação penal independentemente de qualquer outra exigência. STJ. 1ª Seção. MS 20.857-DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Rel. Acd. Min. Og Fernandes, julgado em 22/05/2019 (Info 651).

Portanto, é possível afastar os prazos previstos pelo referido art. 142 em caso de crime, ainda que não haja investigação criminal, aplicando-se o disposto no art. 109 do Código Penal para fins do quantum temporal e do termo a quo de contagem da prescrição. Ademais, cabe destacar que o STF possui o mesmo entendimento (STF. 1ª Turma. AgRg no RMS 31.506/DF, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 26/3/2015; MS 23.242 e MS 24.013). Neste sentido, negada a inexistência do crime pelo Judiciário, não subsistirá sanções administrativas, de modo a promover a reintegração do servidor (CRETELLA JÚNIOR, 1973, p. 153), podendo ocorrer a mesma lógica quando há absolvição por negativa de autoria.

Existem casos, no entanto, em que, embora seja absolvido o réu no juízo penal, restaria uma parcela apta a dar ensejo à sanção administrativa, sendo que a doutrina denominou tal fenômeno de resíduo administrativo (KOZLOWSKI, 2004, p. 6), conforme dispõe o enunciado da Súmula 18 do STF: “pela falta residual, não compreendida na absolvição pelo juízo criminal, é admissível a punição administrativa do servidor público”. A dúvida que resta, neste caso, é se, absolvido o réu no juízo criminal e havendo resíduo administrativo, aplicar-se-ia o regime administrativo das prescrições do art. 142 da Lei nº 8.112/1990, ou o regime do art. 109 do Código Penal.

Houve, entretanto, entendimento que prevaleceu no STJ. Isto é, extinta a punibilidade do crime por prescrição in concreto, ou absolvido o réu, há de se aplicar, quanto ao PAD, o art. 142 dantes referido, conforme já decidiu o STJ (REsp. 1.335.113/RJ, Rel. Min. CASTRO MEIRA, DJe 6.12.2012). Em igual sentido:

Segundo orientação do Superior Tribunal de Justiça e nos termos da legislação estadual, a prescrição da pretensão punitiva do Estado, nos casos em que o servidor pratica ilícito disciplinar também capitulado como crime, deve observar o disposto na legislação penal. Porém, nos casos de absolvição no processo criminal ou de abolitio criminis, aplica-se o disposto na legislação administrativa. Agravo regimental improvido (AgRg no RMS 32.363/RS, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJe 15.3.2011).

Deste modo, o presente artigo pretendeu, de maneira breve e sucinta, sem pretensão de exaurimento, tratar de algumas problemáticas que decorrem das situações jurídicas que um mesmo fato jurídico pode originar, possibilitando o melhor entendimento acerca da dinâmica do Direito. Vale destacar, de toda sorte, que todos os casos exigem a análise concreta para a aferição correta das circunstâncias envolvidas.

Referências Bibliográficas

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral v. 1. 25ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

CRETELLA JÚNIOR, José. Do Ilícito Administrativo. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo: 1973.

HUNGRIA, Nelson. Ilícito Administrativo e Ilícito Penal. Revista de direito Administrativo, 1945.

KOZLOWSKI, Wilson. A Prescrição Penal e a sua incidência na esfera administrativa. Revista da AGU: 2004.

MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Tratado de direito administrativo disciplinar. 2. ed. Rio de Janeiro: FORENSE, 2010.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019.

Autor: Dr. Iuri Cavalcante, CEO do Escritório Cavalcante Reis

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